Cupulate e o sabor original da Amazônia
O produto é uma alternativa mais cremosa e sem cafeína ao chocolate tradicional, mas enfrenta a falta de processos industriais que possibilitem sua maior produção comercial
5/8/20249 min ler


Fruto nativo da Amazônia, o cupuaçu é conhecido por seu sabor ácido e concentrado, que dá origem a iguarias típicas da região, como sucos, sorvetes e doces, consumidos tanto no dia a dia quanto em ocasiões especiais – como, por exemplo, os tradicionais cremes de cupuaçu, comumente apreciados em festas de Natal, Ano Novo e aniversários. Mas, além do costume da população local, existem diversos potenciais ainda a serem explorados – um deles é o cupulate, um produto semelhante ao chocolate tradicional.
Assim como os produtos feitos de cacau, o cupulate pode ser produzido tanto na forma de barra quanto na forma de bebida, e um aspecto que torna isso possível é que o cupuaçu (nome científico Theobroma grandiflorum) pertence ao mesmo gênero do cacau (Theobroma cacao). A superfície externa e o formato de ambos os frutos são diferentes – o cacau é mais alongado, com casca mais áspera, e o cupuaçu é mais arredondado e com casca lisa. Mas suas amêndoas internas (parte utilizável da semente) são muito semelhantes, até mesmo na aparência, e é dessa parte que o chocolate e o cupulate são feitos.
Os dois produtos têm textura, sabor e aroma semelhantes, mas o cupulate é mais cremoso, dissolvendo-se facilmente ao ser consumido. “Outra vantagem do cupulate em relação ao chocolate de cacau é que o derivado de cupuaçu tem um teor de cafeína quase inexistente. Isso é muito interessante para nichos de mercado como idosos ou pessoas com ansiedade, insônia, podendo consumir o doce à noite sem problemas”, explica Rafael Moyses Alves, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Amazônia Oriental (Embrapa), que se dedica ao cupuaçuzeiro há mais de 20 anos.
Com base no conhecimento ancestral de comunidades da região que já produziam cupulate artesanalmente, pesquisadores da Embrapa desenvolveram um processo tecnológico para a produção do cupulate, fundamentado em pesquisas científicas, e também criaram o nome "cupulate", que, desde 2015, é marca registrada da empresa. O objetivo do registro era garantir que a Amazônia, de onde a planta é nativa, mantivesse a propriedade intelectual da marca, não correndo o risco de outros países reivindicarem esse direito, como ocorreu nos anos 2000, quando as multinacionais Asahi Foods e Cupuaçu International registraram o nome "cupuaçu" como marca exclusiva japonesa – questão que gerou uma batalha judicial e, por fim, resultou na anulação do registro por empresas estrangeiras.
O próprio cupulado e seu processo tecnológico de fabricação, desenvolvidos na década de 1980 pela pesquisadora aposentada Raimunda Fátima Ribeiro de Nazaré, da Embrapa Amazônia Oriental, já tiveram patente registrada pela agência, hoje vencida. Hoje, essa técnica é de domínio público.
“Já se produz muito cupuaçu na região, mas ainda se prioriza muito o aproveitamento da polpa e, muitas vezes, as sementes são simplesmente descartadas. Com a produção do cupulato, abre-se mais uma possibilidade de aproveitamento do fruto, contribuindo para agregar valor à cultura do cupuaçu, gerando renda e garantindo ainda mais sustentabilidade”, explica o pesquisador da Embrapa. As sementes de cupuaçu representam grande parte do fruto (cerca de 20%) e, segundo Alves, as sementes são a porção com melhor valor nutricional, ricas em lipídios e proteínas. Após a extração das amêndoas, elas são fermentadas, secas, torradas e moídas para a obtenção do cupulato.
Desafio - Para quem já produz chocolate a partir do cacau e tem equipamentos e expertise nesse segmento, adicionar o cupulate ao catálogo é vantajoso porque as sementes de cupuaçu duram mais e são mais baratas que as de cacau (justamente por serem pouco exploradas atualmente). No entanto, ainda há um entrave para a indústria: a remoção da película que reveste a amêndoa de cupuaçu é mais difícil que a de cacau e ainda não há equipamentos que realizem esse processo de forma automática, então, até o momento, ele é feito de forma manual, o que acaba sendo mais demorado e trabalhoso. "Precisamos continuar pesquisando e investindo para simplificar essa etapa e tornar essa produção mais atrativa para o mercado", explica Alves.
A origem remonta às comunidades tradicionais
No Brasil, ainda são poucas as empresas que fabricam o cupulate, como a De Mendes, sediada em Santa Bárbara, no interior do Pará. O proprietário, Cesar de Mendes, nasceu em Macapá, capital do Amapá, e cresceu na capital vizinha, Belém (PA), carregando consigo as tradições da Amazônia. Ele costumava observar a avó e a mãe fazendo chocolate e suco de cacau com os frutos frescos colhidos da árvore. Nunca imaginei que um dia me tornaria um chocolatier, como são conhecidos os especialistas em chocolate.
De Mendes começou a produzir chocolate de cacau e, somente a partir de 2019, incorporou o cupulate. Hoje, são comercializadas duas opções de tabletes desse tipo: Kukuni (70% cupuaçu) e Amabela (53% cupuaçu). O primeiro é feito a partir de frutos provenientes da Colônia Chicano, em Santa Bárbara, no Pará, que planta cupuaçu em um sistema agroflorestal – aqueles que recuperam a área degradada da produção agrícola, em um modelo que associa árvores a culturas agrícolas e, às vezes, também a animais.
O segundo tipo é produzido com frutas fornecidas pela Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (sudoeste do Pará), a Amabela – que dá nome ao produto final. Foram essas mulheres que, de fato, apresentaram ao empreendedor sua técnica tradicional de tratamento de sementes de cupuaçu, transmitida de geração em geração. "Eu já tinha experimentado o cupulate algumas vezes, mas não gostei do sabor. Foi só a técnica da Amabela que realmente me incentivou a trabalhar com essa linha", diz De Mendes. Segundo ele, a técnica da Associação mantém o sabor e o frescor do cupuaçu.
Foi a partir desse conhecimento de Belterra que o empresário começou a realizar testes na fábrica e repassou o aprendizado para a Colônia Chicano, com quem já trabalhava na fabricação de chocolates há algum tempo. "Os sabores dos dois tabletes são muito parecidos, a única diferença é a porcentagem de cupuaçu. O sabor lembra um pouco a polpa de cupuaçu. O perfume e a acidez da fruta dão um toque diferenciado. Agora, ambos são campeões de vendas na De Mendes", destaca.
O sucesso tem sido tanto que, mesmo no exterior, quando o proprietário leva os produtos para feiras internacionais, o estoque se esgota rapidamente. As vendas no Brasil são feitas em lojas físicas e online, sendo São Paulo o maior mercado, superando até mesmo a clientela de Belém.
Cultivo do fruto ainda se concentra na agricultura familiar
O cupuaçu é um fruto que, na mata nativa, cresce a partir de uma árvore muito alta (pode atingir 15 metros de altura) e sua polpa é rica em vitamina C, vitaminas do complexo B e sais minerais. Graças à intervenção da ciência, diversos avanços no melhoramento genético foram realizados para aumentar a competitividade da produção de cupuaçu, como o cultivo de árvores de menor porte (facilitando a colheita e reduzindo as perdas de frutos), além de árvores mais resistentes a doenças.
Segundo Rafael Moyses Alves, da Embrapa, o sistema produtivo do cupuaçu ainda está concentrado em pequenos produtores e na agricultura familiar. Algumas das dificuldades enfrentadas são a falta de organização social desses grupos e a indisponibilidade de dados oficiais. "Não sabemos, precisamente, quanto é produzido na região. Depende de cada estado monitorar. Os produtores de cupuaçu não têm uma organização que os una como grupo para compartilhar experiências e buscar recursos, melhorias, juntos", avalia.
Alguns estados calculam sua produção, como o Instituto de Desenvolvimento Agrícola e Florestal Sustentável do Amazonas (IDAM), que registrou 9 milhões de frutos de cupuaçu produzidos no estado em 2021 (números de unidades). A Amazônia Legal solicitou dados aos demais estados da Amazônia Legal, mas até o fechamento desta edição, apenas Maranhão e Acre, além do Amazonas, haviam respondido, informando que não possuem dados sobre a produção de cupuaçu.
A manteiga extraída da semente de cupuaçu tem diversas utilidades
Após a descoberta do potencial da semente de cupuaçu, um leque de possibilidades de uso se abriu. Além do cupulate, sua semente, rica em óleo, está sendo utilizada para produzir uma manteiga que hoje é aplicada na indústria de cosméticos e também para a produção de chocolates que misturam cacau e manteiga de cupuaçu.
Uma das fabricantes desse tipo de chocolate é a Cacau Way, empresa formada pela Cooperativa Agroindustrial Transamazônica (Coopatrans), sediada em Medicilândia, no Sudoeste do Pará.
"Percebemos que as pessoas utilizavam a polpa de cupuaçu e a semente era descartada, mas também que ela tinha bastante manteiga, assim como a manteiga de cacau, e poderia agregar valor aos cooperados", afirma Hélia de Moura, uma das sócias da Cacau Way.
Atualmente, a Cacau Way comercializa três produtos desse tipo: o tablete 52% manteiga de cupuaçu, lançado há mais de cinco anos; o chocolate branco 50% manteiga de cupuaçu, lançado em 2021; e Choconuts, uma pasta de cacau que contém manteiga de cupuaçu em sua composição, lançada em setembro de 2022.
Segundo Moura, o toque de sabor do cupuaçu é sutil. "É como comer chocolate normal, não muda muito em comparação com a manteiga de cacau. A diferença está na sustentabilidade, usando mais produtos da floresta", ressalta.
Até o momento, a empresa não tem planos de incorporar o cupulate em sua linha de produtos, devido à dificuldade de remoção da película que reveste a amêndoa de cupuaçu. "Mas queremos expandir essa produção com amêndoas de cupuaçu, inclusive vendendo-as in natura. Essa manteiga está no auge. É cicatrizante, protetor solar natural, boa para os cabelos, tem várias vantagens", acrescenta.
Atualmente, a Coopatrans conta com 40 parceiros, sendo 37 agricultores e três pessoas na área administrativa. Os produtos são vendidos pela internet, em lojas físicas e revendedoras e já estão disponíveis, além do Pará, no Maranhão, em Goiás, no Rio Grande do Sul e em São Paulo.
Projeto investe no potencial industrial do cupuaçu
Com foco no potencial ainda pouco explorado dos produtos florestais, um grupo de produtores e pesquisadores criou o Instituto Amazônia 4.0. Desde 2017, o projeto é liderado pelo climatologista Carlos Nobre e pretende realizar os primeiros protótipos de laboratórios-fábrica para a Amazônia, para atuar no beneficiamento de castanha-do-Pará, cupuaçu e cacau.
Segundo Moura, o toque de sabor do cupuaçu é sutil. "É como comer chocolate normal, não muda muito em comparação com a manteiga de cacau. A diferença está na sustentabilidade, usando mais produtos da floresta", ressalta.Um dos integrantes do grupo é Cesar De Mendes, convidado por sua expertise em cacau. A ideia é promover condições para que a Amazônia deixe de ser apenas fonte de matéria-prima e passe a ser também local de industrialização e beneficiamento desses frutos, aumentando assim o valor agregado dos produtos desenvolvidos na região, trazendo mais renda e melhor qualidade de vida às comunidades que vivem da biodiversidade amazônica.
A meta inicial era a implantação de Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs) desde o ano passado, mas, até o momento, nenhum foi inaugurado devido a desafios logísticos que o Instituto enfrentou ao longo do caminho, como a contratação de fornecedores para a produção de material didático.
Os laboratórios são móveis e projetados em um tipo de estrutura arquitetônica geralmente em formato de domo ou teto arqueado, conhecidos como domos geodésicos, alimentados por energia solar fotovoltaica e com conectividade disponível, para circular pelas diferentes comunidades da Amazônia.
A construção da primeira estrutura, no entanto, já começou e a expectativa agora é que, até o final de janeiro de 2023, seja instalada a primeira ACV, com foco em cacau e cupuaçu, no estado do Pará. Inicialmente, a estrutura percorrerá as comunidades para treinamentos, durante dois meses em cada local, começando pela Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, em Santarém, sudoeste do Pará.
As ACVs visam incentivar o desenvolvimento de capacidade empreendedora focada em produtos não madeireiros da biodiversidade amazônica. Além da construção de fábricas, o Amazônia 4.0 levará capacitação profissional às comunidades, para que elas aprendam os mecanismos e se tornem produtoras industriais na região.





